A política nasceu para controlar o poder. O poder sempre esteve e continua com as Elites. Com a democracia tivemos uma oportunidade de exercer esse papel político, mas o desenvolvimentismo, que produz sensações elitizadas e momentos de elitismos, consegue justificar e validar sua opressão, que muitas vezes é defendida pelo próprio oprimido. É comum estarmos tão imersos em tantas necessidades, sejam reais ou não, que perdemos a capacidade de olhar o todo e tentar entender a razão de tanta escassez num mundo tão próspero.
Desaprendemos a sermos humanos. Ou será que para sermos realmente humanos precisamos passar e/ou encarar todo mal inerente a todos nós? Estamos todos em sofrimento, talvez até as Elites. Uns choram por não poderem ser privados de nada e outros choram por serem privados de tudo.
Me parece que o desenvolvimentismo fez com que as sombras que deveriam ser projetadas nas Elites fossem direcionadas para a Política. Penso que devemos reverter essa situação. Precisamos retomar o conceito, a simbolização e a atuação da alteridade. Esta sim deve ser a base social-psíquica da política. É necessário novas consciências e nos incluirmos como produto e produtor dessa sociedade.
Para exemplificar, gostaria de falar sobre do consumo de carne. Acredito que todes ficamos chocados com a notícia que ia “passar a boiada” na Amazonia, certo? Mas qual o motivo de passar a boiada? A população mundial não para de crescer e há demanda para carne. Me parece ser um raciocínio simples. Será que estamos dispostos a parar ou diminuir o consumo de carne para que a boiada não passe ou para diminuir o poder dos pecuaristas? (para outros casos esse exemplo também pode ser válido)
Penso que nosso comportamento e nosso consumo são semelhantes ao voto. Todos contam, são importantes! Temos que parar de falar sobre a sociedade, sobre o capitalismo, sobre a clínica como se fossem separados de nós. Somos produto e produtor.
Será que realmente há questões pessoais isoladas da coletividade? Claro que qualquer dor deve ser acolhida e atendida segundo as questões de cada cliente, mas, quando oportuno, sempre haverá o momento de expandir a clínica, ou melhor, trazer a sociedade para a intimidade clínica. Aqui entra a educação. Mas a área psi, principalmente a clínica, deverá encarar suas hipocrisias e entendido sua origem elitista. A psicologia se diz universal e eu gosto de pensar que seja, mas o que pode a clínica diante de um faminto? De uma mãe oprimida e sozinha? De uma mulher preta abusada? Ou para um homossexual que não vê forma de ser quem é?
Será que temos que buscar responsabilização interna e adaptação externa, aliadas à ressignificação para casos como estes? Será que, sem perceber, não estamos contribuindo para que as psiques aceitem e mantenham esse mundo, adaptando-se a todo custo?
Para começar, sugiro uma introversão da militância. E como toda introversão, esta deve ser solitária e subjetiva. Queiramos ou não, somos seres políticos. A hora que temos que acordar, a forma como chegamos ao trabalho, a forma como nos relacionamos com as pessoas, com o marido ou esposa, a forma como tratamos o garçom, as nossas oportunidades, o salário, o preço da consulta da terapia, o preço de tudo, o que escolhemos ler e as escolhas que pensamos ter, os conflitos, a forma de educar os filhos, a alimentação, consumo, viagens, entretenimento, religião, brigas judiciais, condomínio, contratos, a fome no mundo, a destruição da natureza, toda opressão social, afetiva ou financeira, toda exploração e nossos sentimentos de culpa – tudo é política. Agora, querer entender isso e se tornar politizado ou não, está relacionado aos nossos privilégios, confortos e a autocrítica.
No processo psicoterapêutico Jung deixa claro a necessidade da fase da educação. A teoria já nos direciona para esse papel. Apenas entendo que precisamos discutir e ressignificar ou ampliar o que e como deve ser ensinado. Fazemos parte e atendemos pessoas de classes com privilégios, podemos explicar e expor a política e as consequências dos comportamentos sem impor nada. E nos atendimentos sociais, devemos estar preparados para nos afetar com a situação, revoltar-se junto se preciso for, para que esse ser seja acolhido e entendido com toda dor de sua história, que quase sempre está relacionada às questões políticas e sociais.
Sim, proponho politizar, no sentido de expandir o alcance e a capacidade de relacionar, encontrando alteridade e buscando aos poucos a emancipação da psique da contaminação histórica do contexto desenvolvimentista opressor e do nosso egoísmo classista que nos torna opressores dentro de uma ilusão de sucesso e qualidade e vida, mas na verdade vivendo uma situação de exploração e opressão agonizante. Além de ser imprescindível trazer o coletivo e suas relações de forma concreta para a intimidade clínica.
Gosto de pensar que devemos ser construídos para viver uma biografia com todo o potencial da nossa psiquê e não estarmos fadados às limitações do capital, religiosa ou biológica.
Precisamos todos parir uma nova consciência e dela uma nova possibilidade de mundo. Ele como está não é bom, leve, agradável, divertido. Só parece ser assim para o Patriarcado, que está completamente entrelaçado com a política vigente e que consciente e inconscientemente nos pressiona, oprime e distribui migalhas para sofrermos e sermos explorados calados. A questão, mais uma vez, é que somos produto e produtores desse mundo e precisamos acordar para esse fato. Esse despertar, para que aconteça, deve ser precedido pela possibilidade de nos deixarmos afetar. Esse afeto pode ser capaz de trazer a criatividade tão necessária para encontramos nossos e novos caminhos. E nem a criatividade e nem o afeto são filhos da ordem ou da razão...
Enfim, com a base teórica que acredito, desejo que individuemos. Agora, é esperar que a Natureza, Kairós e a Consciência façam seu trabalho, pois já fomos avisados pela ciência, pelos estudiosos, pelos índios e pela natureza e continuamos ignorando. O reinado de Cronos tem que acabar. Com sentido ou não nossa história e construção é essa e nos trouxe até aqui, com todos esses fatos, questionamentos, angústias, opressões e novas possibilidades que procurei apresentar e busco colegas e outros saberes para se unirem nesse propósito. Que o pensamento, as teorias, o poder e a política também individuem. O futuro é flexível.